Perseguição à Bíblia

“A Bíblia tem sobrevivido à ignorância dos seus amigos e ao ódio dos seus inimigos”

Biblical Digest

O Livro das Boas Notícias de Deus nem sempre foi bem recebido. A Bíblia tem sido ridicularizada, denunciada e alvejada como nenhum outro livro. Os críticos têm atacado a sua exatidão factual. Personagens e nações nela registados têm sido considerados míticos. Mas, graças ao estudo científico e à pesquisa arqueológica, as afirmações bíblicas têm sido autenticadas como factos. Afinal, os críticos estavam errados. O Livro tinha razão!

A história universal e a história do Cristianismo mostram que, ao longo do tempo, tanto a Bíblia como aqueles que a amam, respeitam e consideram têm sido maltratados e perseguidos. Manuscritos e Bíblias impressas foram queimados em fogueiras. Pessoas que possuíam e liam a Bíblia foram condenadas às galés. Outros que  a traduziram foram queimados ou estrangulados. 

O absurdo é que, ao longo dos séculos, os  ataques não vieram do exterior do Cristianismo, como seria expectável. As perseguições surgiram do próprio seio da Cristandade, como confirmação profética e sinal dos tempos. Coloca-se, então, a questão: porque é que isto aconteceu?

Depois de Cristo ter ascendido ao Céu, os apóstolos prosseguiram na execução da ordem de Jesus – fazer discípulos de todos os povos, ensinando e batizando. Pode dizer-se que a Igreja Cristã resistiu fielmente durante os três primeiros séculos, apesar das perseguições romanas, mas também por causa delas. Quando, em 313, o imperador Constantino assinou o Édito de Milão, garantindo a liberdade religiosa dentro do Império Romano, a Igreja passou de perseguida a privilegiada. Constantino restaurou as propriedades da Igreja, deu-lhe dinheiro e convocou os Concílios eclesiásticos de Arles e de Niceia. Em 392, o imperador Teodósio proclamou o Cristianismo “religião oficial do Império”. Entretanto, a “conversão” em massa dos pagãos teve como consequência o sincretismo – mistura confusa de doutrinas diferentes, ou seja, adoção de falsas doutrinas e de erros na Igreja (por exemplo, a mudança do dia de repouso do sétimo dia, o Sábado, para o primeiro dia, o domingo [lei de Constantino, no ano de 321, e sua ratificação no Concílio de Niceia, em 325]; o culto das imagens – idolatria, adoração dos santos, superstições, etc.). Este desenvolvimento conduziu a Igreja à mundanidade, à busca de riquezas, ao poder abusivo do clero e, em particular, à supremacia do Bispo de Roma e ao sistema antibíblico do Papado.

Por outro lado, também ao longo dos séculos, registaram-se tentativas de reforma dentro da própria Igreja. Muitos se levantaram, com mais ou menos sucesso. Citamos apenas três exemplos de fidelidade e de tentativas de reforma, todos recebidos com perseguição, o padrão habitual.

John Wycliffe (1320-1384) 

Teólogo e Reformador inglês, Wycliffe foi professor em Oxford e, desde 1374, pároco em Lutterworth. Durante a sua vida, dedicou-se à primeira tradução manual da Bíblia para o inglês, a partir do latim (a Vulgata), só divulgada em 1388. Para Wycliffe, a Bíblia era a única fonte de crença, regra de fé e autoridade. Por isso, rejeitou o Papado, a vida monástica, a hierarquia, a posse de bens eclesiásticos, a confissão auricular e o celibato; condenou a doutrina do sacrifício da missa (a transubstanciação), os sacramentos, o culto dos santos e a veneração das relíquias. As suas ideias sobreviveram nos círculos dos Lolardos. Em 28 de dezembro de 1384, Wycliffe teve uma hemorragia cerebral, falecendo três dias depois, no último dia do ano. 

A influência dos escritos de Wycliffe foi significativa noutros movimentos reformistas, em particular sobre o da Boémia, liderado por Jan Huss e Jerónimo de Praga. Para travar tais movimentos, a Igreja convocou o Concílio de Constança (1414-1418). Em 4 de maio de 1415, o Concílio declarou Wycliffe como herege, recomendando que todos os seus escritos fossem queimados e ordenando que os seus ossos fossem exumados e queimados. Isto foi cumprido treze anos mais tarde, pelo Papa Martinho V. As cinzas de Wycliffe foram lançadas no rio Swift, que banha Lutterworth, em 1428.

William Tyndale (1494-1536) 

Teólogo e Reformador inglês, Tyndale estudou em Oxford e obteve (em 1515) o Mestrado, tendo estudado hebraico, grego e latim. Foi ordenado ao sacerdócio em 1521. Também estudou em Cambridge, onde captou as ideias de Lutero. Em 1523, Tyndale partiu para Londres em busca de um local para trabalhar na tradução da Bíblia, das línguas originais para o inglês. Na Inglaterra daquela época, traduzir a Bíblia  era um crime passível de morte. Em 1524, Tyndale deixou a Inglaterra e foi para Hamburgo, na Alemanha, na intenção de colocar a Bíblia nas mãos do povo. No início de 1525, o Novo Testamento estava pronto para impressão. Quando estava a ser impresso, as autoridades atacaram de surpresa a gráfica. Tyndale conseguiu escapar a tempo, para completar a edição do Novo Testamento, em 1526, em Worms. Quinze mil exemplares, em seis edições, foram contrabandeados para a Inglaterra, entre os anos de 1525 e 1530. As autoridades da Igreja tentaram confiscar esses exemplares e queimá-los, mas não conseguiram conter o fluxo de Bíblias da Alemanha para a Inglaterra.

Não podendo mais regressar a Inglaterra, porque a sua vida estava em perigo, em 1534 Tyndale mudou-se para Antuérpia, na Bélgica, para completar a tradução do Antigo Testamento. Pouco depois, em maio de 1535, foi traído por um colega inglês, tendo sido preso. Tyndale ficou detido 16 meses no Castelo de Vilvoorde, perto de Bruxelas. Durante esse tempo, um dos seus colaboradores, Miles Coverdale (1488-1569) terminou a tradução de toda a Bíblia iniciada por Tyndale. A 6 de outubro de 1536, Tyndale foi estrangulado e, depois, queimado na fogueira. As suas cinzas foram lançadas ao rio que corria ao lado do castelo. As suas últimas palavras foram: “Senhor, abre os olhos ao rei de Inglaterra.” 

A ironia é que, dois ou três anos depois, o rei Henrique VIII, referindo-se ao Novo Testamento traduzido por Tyndale, disse: “Se não há heresias nele, que seja espalhado largamente entre todas as pessoas!” E, em 1539, foi ordenado que cada igreja na Inglaterra tivesse disponível uma cópia da Bíblia em inglês. Apesar de Tyndale não ter vivido para ver o resultado daquilo que empreendeu, a sua oração foi atendida por Deus e a causa do Evangelho triunfou, assim como a sua tradução.

Os Valdenses

A história dos Valdenses do Piemonte (região nos Alpes, entre a França e a Itália) estende-se por mais de oito séculos. Expulsos, excomungados, condenados como hereges, perseguidos, vítimas de cruzadas destruidoras (a Inquisição tentou eliminá-los), torturados, chacinados à espada, queimados nas fogueiras, obrigados a esconder-se e a viver nas matas e nas montanhas… 

Qual o seu crime? Dirigidos inicialmente por Pierre Valdo, desde 1173, elegeram a Bíblia como a sua única regra de fé e prática. Traduziram a Bíblia do latim para o provençal, língua do povo da região. Iam copiando à mão as Escrituras para que, indo de terra em terra, os pregadores valdenses itinerantes pudessem dar testemunho da verdade bíblica. Esta versão das Escrituras foi a base para a tradução da Bíblia em francês, concluída em 1535 por Olivétan, e impressa em Neuchâtel. 

O legado valdense é profundo: um exemplo de fidelidade à Palavra de Deus e de resistência e resiliência, desde o século XII até hoje. Durante o período mais negro da Idade Média, os Valdenses foram a referência e o remanescente fiel de Deus no meio de um Cristianismo comprometido com o poder político e apostatado. 

“Os homens não rejeitam a Bíblia porque ela se contradiz, mas porque ela contradiz os homens” (Walter B. Knight). ¬