João Ferreira de Almeida: vida e obra

Introdução

Se há alguém a quem o Protestantismo português muito deve, essa pessoa é, seguramente, João Ferreira de Almeida, o primeiro tradutor da Bíblia completa para português. Ao traduzir as Sagradas Escrituras na língua de Camões, ele tornou possível o acesso ao texto sagrado a todos os falantes da nossa língua. Podemos mesmo dizer que o serviço que prestou se estendeu para além dos limites do Protestantismo português. De facto, a sua tradução da Bíblia ajudou a fixar o português falado em todos os países lusófonos e prestou, assim, um serviço de grande mérito à língua portuguesa. Juntamente com o celebrado Fernando Pessoa, também João Ferreira de Almeida poderia dizer que “A minha pátria é a língua portuguesa”. Apesar de ter vivido a maior parte da sua vida emigrado no estrangeiro, como tantos outros “estrangeirados” portugueses que se destacaram lá fora, nunca esqueceu a sua nacionalidade e, mais do que isso, a sua língua. É, pois, com justiça que pode ser considerado não apenas um dos pilares do Protestantismo lusófono, mas também um esteio na afirmação cosmopolita da língua portuguesa.

Origem, juventude e conversão

João Ferreira Annes de Almeida nasceu em 1628, na localidade de Torre de Tavares, no concelho de Mangualde, distrito de Viseu. Filho de pais Católicos, foi batizado segundo o rito da Igreja Católica. Reinava, então, em Portugal o rei Filipe III, estando o país sob domínio espanhol. Como ficou órfão quando ainda era criança, veio viver para casa de um tio, em Lisboa. Este tio era membro do Clero e terá proporcionado ao sobrinho uma boa educação, tendo em vista a sua entrada  para o sacerdócio. Graças a esta preparação cultural, ele adquiriu o conhecimento de línguas vernáculas que seriam úteis para a realização do seu futuro projeto de tradução da Bíblia. 

Quando atingiu os catorze anos, João Ferreira de Almeida emigrou para a Holanda, país em que vigorava a religião Calvinista da Igreja Reformada. Este país, rico e em processo de construção de um novo império colonial, era, naquele tempo, um destino privilegiado para a imigração. Por razões que desconhecemos, o jovem português decidiu viajar até às Índias Orientais Holandesas. Chegou a Batávia, na Ilha de Java (parte da atual Indonésia), que era o centro administrativo da Companhia Holandesa das Índias Orientais. Os Holandeses tinham conquistado esta Ilha aos Portugueses, em 1641, aproveitando o facto de Portugal estar envolvido nas guerras da Restauração desde 1640. Nessa Ilha existiam muitas colónias florescentes de Portugueses. Quando viajava entre Batávia e Malaca, tendo ainda catorze anos, João Ferreira de Almeida obteve e leu um folheto Protestante, escrito em castelhano, intitulado Diferença da Cristandade da Igreja Reformada e Romana. A leitura deste folheto teve um grande efeito sobre o jovem, levando-o a abandonar a religião Católica e a converter-se ao Calvinismo. 

Ao chegar a Malaca, uma antiga praça-forte portuguesa conquistada pelos Holandeses, fez-se batizar na Igreja Reformada Holandesa, decorria então o ano de 1642. É nessa data que toma consciência da necessidade de uma tradução da Bíblia em português. Já existiam traduções em castelhano, em holandês, em italiano ou em inglês, mas na língua de Camões não havia qualquer tradução. Assim, em 1644, com dezasseis anos, João Ferreira de Almeida começa a traduzir para o português os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos, a partir da versão castelhana de Reina-Valera e cotejando também a versão latina de Beza, a versão francesa de Genebra e a versão italiana de Diodati. Não recorre ao texto bíblico nas suas línguas originais (hebreu e grego), pois ainda não as conhece. Em 1645, esta tradução do Novo Testamento está concluída. Sob a forma de manuscrito, ela espalha-se pelas comunidades portuguesas que integravam a Igreja Reformada em Malaca, Batávia e Ceilão. Crê-se que uma cópia terá sido enviada para Amesterdão, para ser impressa, mas, devido ao falecimento do responsável pela publicação do texto, ela perdeu-se. Esta foi a primeira experiência de João Ferreira de Almeida como tradutor do texto bíblico, tinha ele 17 anos.

Ao serviço da Igreja Reformada

Em 1648, João Ferreira de Almeida entra para o ministério da Igreja Reformada Holandesa, como “visitador de doentes”. Este cargo era o mais elementar na hierarquia eclesiástica da Igreja Calvinista, não implicando uma ordenação por parte do Presbitério. Aplica-se nesta função, animando e consolando os doentes internados nos hospitais ou convalescendo nas suas casas. Em janeiro de 1649, é ordenado diácono e passa a fazer parte do Presbitério da Igreja Reformada em Malaca, administrando os fundos de socorro aos pobres. Este era o primeiro grau da hierarquia da Igreja Calvinista que implicava a ordenação. Como diácono, competia-lhe administrar os fundos para auxílio dos Cristãos pobres. Entretanto, continuou a exercer o ministério de “visitador de doentes”.

Na cidade de Malaca, traduz para português o folheto Diferença da Cristandade da Igreja Reformada e Romana, que tinha estado na origem da sua conversão. Inicia também, em 1650, a tradução do Catecismo de Heidelberg e da Liturgia, cujas primeiras edições serão publicadas em 1656 e 1673. Em março de 1651, João Ferreira de Almeida muda-se para Batávia, capital da Índias Orientais Holandesas, ainda apenas como “visitador de doentes” (pois tinha-se demitido de diácono no fim de 1650), onde inicia os estudos de Teologia, que decorrerão entre 1651 e 1655. Aperfeiçoa, deste modo, o seu conhecimento das línguas originais – o hebreu e o grego – em que está redigida a Bíblia. Ainda em 1651, João Ferreira de Almeida retoma a tradução do Novo Testamento. A nova tradução é completada em 1654, mas também ela não foi imediatamente impressa. A tradução será apenas publicada em 1681, em Amesterdão. 

Em 1653, Almeida candidata-se ao exame de entrada para o ministério pastoral. A 17 de março de 1654, o jovem português presta exame público e é considerado candidato a Ministro do Evangelho, ao mesmo tempo que ensina o catecismo a professores das escolas primárias e português aos Pastores holandeses que pastoreiam as igrejas reformadas portuguesas das Índias Orientais. Em setembro de 1655, candidata-se de novo ao exame para Pastor. Faz o exame final com sucesso em 22 de agosto de 1656, depois de uma breve pregação sobre Tito 2:11 e 12, que muito agradou ao júri. A sua vida piedosa e dedicada à disseminação do Evangelho também contribuiu para a decisão de aprovação da sua candidatura ao ministério evangélico. Será ordenado Pastor nesse mesmo ano.

Ainda em 1656 é nomeado oficialmente Ministro Pregador para a Missão da Ilha de Ceilão e é enviado para pastorear essa comunidade reformada, sendo acompanhado por um colega de  nome Filipe Baldaeus. João Ferreira de Almeida irá dedicar-se à pregação do Evangelho em português entre as comunidades lusófonas da região. Em 1656, está colocado em Gale, no Sul do Ceilão, como Pastor e, de 1658 a 1661, será responsável pela igreja em Colombo. Durante estes anos, trabalhou também na revisão da sua tradução do Novo Testamento. Foi igualmente durante a sua estadia na Ilha de Ceilão que conheceu a sua esposa e se casou. Ela chamava-se Lucrécia Valcoa de Lemmes e, como ele, tinha deixado o Catolicismo pelo Protestantismo reformado. Deste casamento resultou o nascimento de um filho e de uma filha. O começo da vida do casal foi marcado por um perigoso incidente. Durante uma viagem pelo Ceilão, o casal foi atacado por um elefante, tendo mesmo corrido sério perigo de vida. Em 1659, as autoridades holandesas de Ceilão proíbem Almeida de pregar em português, pois consideraram que a sua pregação franca sobre a apostasia da Igreja Romana ofendia a população Católica lusófona. No entanto, apoiado pelo Presbitério da Igreja Reformada, ele continuou a pregar na língua de Camões. 

Em 1661, João Ferreira de Almeida serve como missionário em Tuticorim, no Sul da Índia, praça forte conquistada pelos Holandeses aos Portugueses, em 1658. A sua estadia aí também não foi pacífica. Falando abertamente contra os dogmas Católicos e expondo a corrupção moral do Clero, muitos membros das comunidades de língua portuguesa da região passaram a considerá-lo apóstata e traidor, recusando-se a ser batizados ou casados por ele. Segundo o seu colega Baldaeus, a Inquisição chegou a condenar João Ferreira de Almeida à pena capital por heresia, ordenando que uma efígie do Pastor português fosse queimada num auto-de-fé em Goa. Felizmente, em 1663, o Governador holandês chamou o Pastor português de volta a Batávia, o que, certamente, lhe salvou a vida.

De pastor a tradutor

Em 1663, com trinta e cinco anos, ele assume a liderança da igreja Reformada portuguesa de Batávia, continuando como seu Pastor até 1689. Durante este longo período de residência em Batávia, João Ferreira de Almeida desenvolveu uma intensa atividade pastoral. Ele persuadiu o Presbitério de que a congregação portuguesa deveria realizar a sua própria celebração da Santa Ceia; propôs que os pobres que recebiam auxílio do fundo de assistência da Igreja fossem convidados a frequentar a igreja e a assistir às aulas de catequese; escreveu um folheto com orações para ser usado nas igrejas portuguesas; propôs que se ordenassem anciãos e diáconos para servirem a igreja; e ofereceu-se para visitar os escravos da Companhia das Índias, a fim de dar-lhes aulas de religião.

Em 1668, é publicada a primeira edição da obra Diferença da Cristandade da Igreja Reformada e Romana traduzida por Almeida alguns anos antes. Dois anos depois, ele é nomeado Presidente do Conselho da Igreja de Batávia. Em dezembro de 1676, João Ferreira de Almeida comunicou ao Presbitério que tinha terminado a tradução do Novo Testamento a partir da língua original, começando a batalha pela impressão da obra. Entretanto, em 1678, numa reunião do Presbitério, declara solenemente que eram falsos os rumores que então corriam de que ele desejaria reconverter-se ao Catolicismo. Estes rumores tinham sido colocados a circular por um monge, Comissário da Inquisição, de nome João do Rosário. No entanto, Almeida tinha já dado provas da sua fidelidade ao Calvinismo, nomeadamente pela sua tradução e publicação do opúsculo Diferença da Cristandade da Igreja Reformada e Romana

Dado que, em 1680, o manuscrito do Novo Testamento em português ainda não tinha sido aprovado pelas autoridades eclesiásticas em Batávia, o tradutor enviou-o por iniciativa própria para a Holanda, para ser aí impresso. A primeira edição do Novo Testamento em português saiu do prelo em 1681, tendo chegado a Batávia um ano depois. Infelizmente, esta edição estava cheia de erros, dado que os revisores que tinham acompanhado a sua impressão não conheciam bem a língua portuguesa. Tendo sabido deste facto, a Companhia das Índias Orientais ordenou a destruição de todos os exemplares, tomando também as providências necessárias para que se começasse uma nova edição, com uma cuidadosa revisão do texto. No entanto, esta revisão demorou dez anos para ser realizada. Só em 1693, já depois da morte do tradutor, é que a segunda edição do Novo Testamento em português foi impressa na Batávia e distribuída pelas igrejas portuguesas. 

Entretanto, enquanto se procedia à revisão do Novo Testamento, João Ferreira de Almeida começou a tradução do Antigo Testamento. A partir de 1682, foi-lhe permitido que ficasse mais liberto dos cuidados com a Igreja, para se dedicar à tarefa de tradução. A 16 de setembro de 1689, ele pede a sua jubilação por motivo de doença e para que possa dedicar todo o seu tempo à tradução do Antigo Testamento. Deixou, assim, de liderar o trabalho pastoral da igreja portuguesa de Batávia, mas continuou como membro do Presbitério local. Mesmo podendo dedicar todo o seu tempo à tradução do Antigo Testamento, de modo a completar a sua tradução da Bíblia para português, não conseguiu acabar a obra à qual dedicara a sua vida. Morreu entre 8 de agosto e 6 de outubro de 1691, na Batávia, com 63 anos. Não se conhece a data exata do seu falecimento, mas sabemos que a
6 de outubro a sua esposa já era oficialmente considerada viúva. 

À data da sua morte, Almeida tinha conseguido traduzir o texto do Velho Testamento até Ezequiel 48:21.
A tradução do livro de Daniel e dos doze profetas menores foi terminada pelo Pastor holandês Jacob op den Akker, um Judeu convertido, em 1694. Depois de muitas peripécias, a tradução de João Ferreira de Almeida do Velho Testamento foi finalmente impressa na Batávia, em dois volumes; o primeiro foi publicado em 1748 e o segundo em 1753. A primeira edição num único volume da tradução completa de Almeida foi impressa em 1819, em Londres, pela Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira. Desde então, a sua Bíblia tem sido editada múltiplas vezes, tendo sofrido diversas revisões, mas continua a ser considerada uma das traduções mais fiéis ao texto bíblico original.

Escritor e polemista
anticatólico

João Ferreira de Almeida devotou-se a espalhar o Evangelho nas possessões holandesas do Oriente, não apenas pela pregação da Palavra e pela missionação, mas também pelo uso da pena e da Imprensa. Sabendo que tinha de defrontar a oposição do Clero Católico e percebendo que necessitava de ferramentas que convencessem os Católicos lusófonos do Oriente da veracidade evangélica da Fé Reformada, Almeida empenhou-se como escritor e polemista anticatólico. Começou por traduzir e publicar o Catecismo de Heidelberg, cuja primeira edição foi feita em 1656, na cidade holandesa de Amesterdão, e enviada para o Oriente holandês, e cuja segunda edição foi impressa em 1673, já na Batávia. Esta obra formava os seus leitores na fé Reformada e a sua publicação ocorreu no contexto da contínua polémica do Pastor português com a Fé Católica e com a Igreja de Roma.

Sempre com a Bíblia na sua mão, João Ferreira de Almeida desafiava os missionários Católicos a comprovarem as suas doutrinas pelas Sagradas Escrituras. Ele sentia-se moralmente obrigado a iluminar com a verdade do Evangelho os seus compatriotas Católicos que residiam no Oriente. Para esse efeito, pôde, a partir de 1670, utilizar uma pequena tipografia anexa ao Seminário de Batávia. As obras apologéticas que procederam da pena de João Ferreira de Almeida foram as seguintes: 

– Entre 1664 escreve e em 1665 envia para Goa, Sede do Governo Português no Oriente, uma missiva com o título Seis Propostas aos Eclesiásticos de Goa. Sendo endereçada especialmente aos missionários jesuítas, ela polemiza contra a Fé Católica e expõe as diferenças entre a Fé Católica e a Fé Reformada. Este opúsculo será impresso em 1672, na tipografia do Seminário de Batávia. 

– Em 1668, Almeida publica, na Batávia, a primeira edição da sua tradução portuguesa do opúsculo que o tinha convertido à Fé Reformada. Trata-se da obra Diferença da Cristandade da Igreja Reformada e Romana. A tradução deste opúsculo tinha sido iniciada em 1650 e concluída em 1664. Em 1684, este pequeno escrito terá uma segunda edição.

– Em 1671, Almeida publica As Justas Causas e Urgentes Razões, em que apresenta argumentos contra a Igreja Romana em 206 parágrafos. No ano seguinte, dá à estampa, na Batávia, Duas Epístolas e Vinte Propostas (obra também conhecida pelo título Cartas contra o Papado). Trata-se de um conjunto de folhetos anticatólicos, com cerca de 88 páginas, que assume a forma de uma discussão teológica entre o seu autor e os sacerdotes Católicos. 

– Por último, João Ferreira de Almeida imprime, por volta de 1684, na Holanda, o Diálogo Rústico. É um opúsculo edificante para a formação espiritual e teológica da comunidade reformada lusófona, sempre em polémica aberta com a doutrina Católica. Foi difundido nas Índias Orientais Holandesas.

O pioneiro

Devemos concluir esta pequena resenha biográfica sublinhando que João Ferreira de Almeida foi, sem dúvida alguma, um pioneiro do Protestantismo português. Ele foi o primeiro Português Protestante a tornar-se Pastor ordenado e evangelista. Foi também o primeiro missionário evangélico português em terras pagãs. Foi igualmente o primeiro missionário Protestante que, depois da Reforma, procurou evangelizar a Índia. E, sobretudo, ele foi o primeiro tradutor da Bíblia completa para a língua portuguesa a partir das línguas originais. Assim, forjou para si um lugar incontornável na história do Protestantismo lusófono, sendo merecedor da gratidão de todos os Protestantes espalhados pelo mundo que celebram a sua fé em português.