A Bíblia Em Português desde a era medieval até ao Século XVII

Neste ano de 2019 comemoram-se 200 anos da primeira Bíblia completa em língua portuguesa, e publicada num único tomo. Esta tradução de João Ferreira de Almeida constitui um marco importante da Bíblia em Portugal. Permitiu uma maior divulgação e popularidade das Sagradas Escrituras em todo o mundo de língua portuguesa, tendo sido seguida pela Bíblia Católica do Padre António Pereira Figueiredo, em 1821. Qual foi o percurso que a Palavra de Deus escrita teve na língua de Camões, desde os primeiros manuscritos em língua vernácula até este marco histórico? Compreender esta história revela-nos o valor da Bíblia a que temos livremente acesso, o privilégio e a responsabilidade que repousam sobre nós perante ela.

Primeiras traduções parciais da Bíblia na língua portuguesa

Ao analisar o processo e a história da divulgação da Palavra de Deus no nosso país não podemos confundir a Bíblia em Portugal com a Bíblia em português. Há relatos da presença de livros da Bíblia no território desde os séculos X e XI, confirmados por fragmentos de diferentes Códices bíblicos medievais latinos, em letra visigótica, e, posteriormente, por Códices em língua castelhana e hebraica.1

 As primeiras traduções de textos da Bíblia, ou citações bíblicas em galaico-português, são tradicionalmente atribuídas a D. Dinis (1261-1325), no início do século XIV. Referem-se a um texto parafraseado dos primeiros vinte capítulos de Génesis a partir da General Estória de D. Afonso X de Leão e Castela, restando, nos nossos dias, alguns fragmentos.2 No entanto, foram as traduções parciais realizadas pelos Monges de Alcobaça que fizeram deste Mosteiro, instituído em 1187, o centro importante para as cópias e as traduções de escritos bíblicos, primeiro na língua latina e, posteriormente, na língua vulgar. O testamento de D. Mafalda, irmã de D. Afonso II (falecida em 1256), revela que este Mosteiro era como a primeira Biblioteca, criadora e guardadora das cópias dos Escritos Sagrados da nação. Um relato refere a contribuição financeira de D. Afonso Henriques para a realização de uma cópia românica de um Novo Testamento.3 Fortunato de São Boaventura considerou, em 1827, na História Chronologica e Critica da Real Abbadia de Alcobaça, que a tradução do Vita Christi, por Frei Bernardo de Alcobaça, é “a matriz fecunda da língua portuguesa”.4 Este cronista eclesiástico tem razão em lamentar que de Alcobaça nunca saiu uma Bíblia completa em linguagem vulgar, e é verdade que a maioria destas traduções não foi realizada com fidelidade para com as línguas bíblicas originais, porque elas têm como base outras traduções de Bíblias historiadas. Este é o caso do Códice 349, a Bíblia de Alcobaça, uma tradução do Antigo Testamento historiado e resumido. Frei Fortunato de S. Boaventura crê que, pela análise filológica, este pode ser um documento traduzido pouco tempo depois de 1320.5 O manuscrito da Bíblia de Alcobaça foi analisado por este Monge de Alcobaça, que editou e realizou uma cópia impressa em 1829 com correções. O original do século XIV acabou por se perder quando Frei Fortunato se exilou em Roma.6

Importância da Bíblia para a sociedade portuguesa do século XV

D. João I (1385-1433) fez traduzir e publicar, no início do século XV, praticamente todo o Novo Testamento. Na segunda parte da Crónica D’El Rei D. João I (IV volume), o cronista Fernão Lopes escreveu, em 1443, que este monarca “fez grandes letrados tirar em linguagem os Evangelhos, os Atos dos Apóstolos e as Epístolas de São Paulo, para que aqueles que os ouvissem fossem mais devotos acerca da Lei de Deus”.7

O cronista, e primeiro responsável pela Real Biblioteca Pública de Lisboa (1796), António Ribeiro dos Santos, relatou, em 1806, que D. João I
(1357-1433) fez também traduzir o livro de Apocalipse. Este cronista menciona ainda a tradução, do francês para o português, dos Evangelhos e das Epístolas, realizada pela Infanta D. Filipa (1437-1493), neta de
D. João I.8 O túmulo de D. João I, Mestre de Avis, e de D. Filipa de Lencastre (1360-1415), no Mosteiro da Batalha, representa o rei a segurar, na mão direita, o cetro real, para mostrar a autoridade governativa, e a rainha a segurar, na mesma mão, um livro, caracterizado pelas fivelas típicas das Bíblias de Alcobaça dessa época,9 para simbolizar a autoridade espiritual. 

Há evidências de que a Bíblia (principalmente latina e hebraica) ocupava um papel importante na vida da Corte, das elites clericais e eruditas. A produção literária em língua portuguesa no século XV revela frequentemente citações bíblicas, como, por exemplo, o Leal Conselheiro, um tratado de ética e moral escrito por D. Duarte (1433-1438),10 ou o teatro de Gil Vicente (1465-1536). Na lista de livros da Biblioteca de D. Duarte encontramos a Blivia (Bíblia), o Livro dos Evangelhos, os Atos dos Apóstolos, a Genesy e o Livro de Salomão.11 

Os painéis de São Vicente de Fora, da autoria de Nuno Gonçalves (1445), retratam a sociedade portuguesa do tempo dos reis D. Afonso V (1432-1481), D. João I e D. João II
(1455-1495), das rainhas D. Isabel, D. Leonor e do Infante D. Henrique (1394-1460), todos tendo uma ligação forte às Sagradas Escrituras relatada em vários documentos.12 O personagem central no “Painel do Infante” mostra o Evangelho de João em português, enquanto o personagem  no extremo direito do painel aponta para uma Bíblia hebraica aberta. 

No final dos anos 1400, proliferaram em Portugal publicações impressas da Bíblia em hebraico, sendo os Judeus os principais tipógrafos do país. O primeiro incunábulo de Portugal foi um Pentateuco impresso em 1482, em Faro. Seguidamente foram impressos, em Lisboa, um Pentateuco com o Targum, em 1491; Isaías e Jeremias, com comentários, em 1492; Provérbios de Salomão, com comentários, em 1492. Os Profetas Primeiros, com comentários, foram impressos em 1494, em Leiria, entre outros.13 

D. Leonor, esposa de D. João II, patrocinou a impressão da primeira sinopse dos Evangelhos em língua portuguesa, De Vita Christi, de Ludolfo da Saxónia, terminada em 1495.
A Vida de Cristo é constituída pelo texto do Evangelho de S. Mateus incrustado com as variantes dos Evangelhos de
S. Marcos, S. Lucas e S. João. Várias personalidades intervieram na tradução, na encomenda e na impressão desta obra, entre as quais a Infanta D. Isabel, D. Duarte e Frei Bernardo de Alcobaça.14 Este livro teve, pelo menos, mais uma edição, alguns anos mais tarde. Posteriormente, foi impresso o Livro Segundo das Vidas e Martírios dos Apóstolos, uma paráfrase livre dos Atos dos Apóstolos, traduzido por
Fr. Bernardo de Alcobaça. Todas estas publicações, que tinham sido impressas em grande número, acabaram por sair de circulação, tornando-se muito raras. Frei Fortunato de S. Boaventura justifica este facto com uma grande recolha de livros religiosos, no tempo da Inquisição, levada para a evangelização dos países africanos, especialmente no Reino do Congo, afirmação que deixa muitas dúvidas.15 

G. L. Santos Ferreira, numa publicação da Religious Tract Society de Londres, de 1906, atribui a D. Leonor “o primeiro passo para a divulgação das Sagradas Escrituras entre os Portugueses”. Sentimos nas palavras deste autor uma crença de que esta poderia ter sido uma “santa manifestação”16 do pilar Protestante de tornar toda a Bíblia acessível ao povo na sua própria língua. Em 1505, D. Leonor fez publicar os Atos dos Apóstolos e as Epístolas de Tiago, Pedro, João e Judas a partir de manuscritos traduzidos por Frei Bernardo de Brivera.17 Santos Ferreira afirmava ter conhecimento de um velho exemplar destes Evangelhos e Epístolas impresso, em português, por Gonçalo Garcia, ainda no tempo da rainha D. Leonor, e que teria sido consultado na Livraria Bertrand.18

A Inquisição e a Indexação da Bíblia vernácula como livro proibido a partir do Séc. XVI

 Segundo G. L. Santos Ferreira, tanto os manuscritos bíblicos anteriores como os patrocinados pela rainha
D. Leonor foram alvo da Inquisição, que condenava quem possuísse, sem licença, qualquer porção da Bíblia em linguagem vulgar.19 No final da primeira parte do século XVI, a Europa fervilhava com os ventos quentes da Reforma Protestante. As condições estavam reunidas em Portugal, nos tempos da rainha D. Leonor, para um reavivamento espiritual que poderia ser diferente do Norte da Europa, pelo bom entendimento e desenvolvimento das Escrituras Sagradas entre Cristãos e Judeus. Qualquer possível semente que poderia germinar numa Reforma Eclesiástica foi então esmagada pela Contrarreforma e pelo Santo Ofício estabelecido na nação durante o reinado de D. João III, pela bula Cum ad nihil magis, de 23 de maio de 1536. A partir de 1547, foi proibida pela Inquisição a posse de Bíblias em língua vernácula, permitindo-se apenas a Vulgata latina. Esta medida foi reforçada a 24 de março de 1564, pela publicação da bula Dominici Gregis, de Pio IV, onde se lê, na regra 4a: “Como tenha mostrado a experiência que, se as versões da Sagrada Biblia, em língua vulgar, se permittirem a cada passo, e sem differença de pessoas, mais é o damno que d’ahi resulta, do que a utilidade; esteja-se n’esta parte pelo juizo do bispo ou do inquisidor, a fim de que, com o conselho do parocho ou do confessor, possam conceder licença de lêr a Biblia vertida em vulgar, por auctores catholicos, aquelles de quem entenderem que d’esta lição podem receber não damno, mas sim augmento da fé e da piedade. A qual licença deverão ter, dada por escripto.”20

A investigadora do CITCEM da Universidade do Porto, Maria de Inês Nemésio, considera que, pela consulta minuciosa dos índices de livros proibidos de 1547 a 1561, “a partir de 1551, Portugal ocupou uma posição avant-garde entre os países Católicos no respeitante à censura”, sobretudo quanto à “preocupação da censura em proibir obras em linguagem vulgar, nomeadamente traduções da Bíblia, das Epístolas e dos Evangelhos… e todos os comentários à Sagrada Escritura”.21 Segundo esta autora, estas proibições foram sucessivamente reforçadas à medida que os índices de livros proibidos eram publicados em Portugal. O desembargador Gil Vaz Bugalho, Cristão-velho, foi condenado à fogueira, em 1552, em Évora, pelo crime de tradução de alguns livros da Bíblia. António Pereira Marraque, fidalgo de Cabeceira de Bastos, foi condenado por rebeldia contra a decisão do Concílio de Trento por traduzir a Sagrada Escritura em linguagem da nação. Mem Bugalho foi condenado por possuir uma Bíblia em linguagem vulgar. António Luís foi condenado por traduzir certos livros da Bíblia.22 Outros, como o humanista e poeta Diogo de Teive (1551), o cronista e humanista Damião de Gois (1572), foram presos por terem tido contacto com a Fé Reformada ou com Reformadores. Damião de Góis, personalidade de relevo do Renascimento em Portugal, que conheceu Erasmo, Lutero e Melâncton, tinha traduzido, em 1538, o livro de Eclesiastes.23 Outro grupo importante de condenados pela Inquisição foi constituído por alguns intelectuais acusados de Judaísmo, como o Dr. António Homem, “meio Cristão-novo”, Lente de Prima de Cânones, Cónego Doutoral da Sé de Coimbra e professor de Direito Canónico na Universidade da mesma cidade. Recebeu a excomunhão maior, foi preso, torturado, estrangulado e queimado num auto-de-fé na Ribeira Velha, em Lisboa, a 5 de maio de 1624. Os seus bens foram confiscados, a sua casa demolida e a terra coberta de sal. Afirmava que a diferença entre o Judaísmo e o Cristianismo estava na observância do Sábado e na recusa do culto dos santos e das imagens. Foi acusado também de sodomia, mas sem prova formal.24

A Inquisição em Portugal, a régia e a episcopal, manifestou-se extremamente forte tanto na sua forma preventiva como repressiva. Mostrou-se eficaz para neutralizar as boas condições que existiam em Portugal para uma Reforma à volta da Palavra de Deus. O poder político português, encabeçado por D. João III, demasiado frágil perante o poder clerical romano, fez desequilibrar a balança para a Contrarreforma. Como consequência, os Judeus, até ali parceiros do desenvolvimento do reino através do comércio, da economia, da navegação e da erudição, foram perseguidos, condenados a exilarem-se, a renegar a fé ou a morrer. As influências da Fé Reformada foram esmagadas e bloqueadas. As Sagradas Escrituras foram apreendidas, destruídas ou tornadas raras, o que travou o desenvolvimento da tradução e da divulgação da Palavra de Deus por mais de um século.

Dois testemunhos interessantes do Séc. XVI sobre as Sagradas Escrituras em português

Frei Luiz dos Anjos apresenta, no livro Jardim de Portugal… (1628), um relato de mulheres virtuosas Católicas. Ao apresentar as qualidades da Senhora Victoria Caldeira (falecida em 1624) refere que, na sua juventude (primeira metade do Séc. XVI), estudava as Sagradas Escrituras em linguagem vulgar, comparando-as com as Escrituras latinas no tempo em “que então não era proibida”.25 Este testemunho é interessante, porque reconhece as virtudes do estudo da Bíblia em português, mas ressalva a comparação com a Vulgata autorizada, para justificar e acrescentar crédito virtuoso pela obediência às ordenanças papais. Apercebemo-nos de que, no século XVI, a Bíblia em língua portuguesa era acessível não só para a Nobreza e para o Clero, mas também para a Burguesia e para as elites intelectuais, como, neste caso, a família de Pedro Caldeira que era escrivão da fazenda. Também reconhece a proibição da posse e da leitura das Escrituras em linguagem da nação. Percebe-se um conflito entre a virtude do estudo das Escrituras e a obediência à interdição do Santo Ofício.

Um outro caso interessante de estudo neste período forte da Inquisição em Portugal a respeito do uso da Bíblia em português refere-se à Bíblia de Lamego, o documento mais antigo à guarda do Museu desta cidade. Trata-se de uma coleção de manuscritos em língua portuguesa, Velho Testamento historiado, copiada pelo ano de 1552,26 pertencente a Francisco de Sá, Conde de Matosinhos e camareiro-mor. Está marcado com licença de leitura para o próprio à condição de não-empréstimo. Esta licença, datada de 9 de novembro de 1558, está autorizada pelo Cardeal D. Henrique, Inquisidor Geral, e pelo Inquisidor
Fr. Francisco Foreiro.27 

A Bíblia de Lamego tem a peculiaridade de apresentar, nas últimas folhas, textos das leis judaicas referentes ao Tratado judaico Pirké Abot (tradição oral da Grande Sinagoga), que era lido aos sábados nas sinagogas, indício de ter sido escrito por um Judeu convertido ao Cristianismo.28 

Assim como a Bíblia de Alcobaça, a Bíblia de Lamego não é uma tradução feita a partir do texto latino da autorizada Vulgata de Jerónimo, mas sim da História Scholastica de Pedro Comestor. Tudo apontava para a sua proibição e destruição. A explicação para a sobrevivência deste manuscrito deve-se, provavelmente, ao facto de este ser uma cópia ou mesmo o original de um Códice existente na Corte e que fora pertença do rei D. Duarte.29

“O Verbo se fez carne e habitou entre nós …”

Semelhantemente a Cristo, que é o Verbo de Deus que Se fez carne (João 1:1-14), a Bíblia é o Verbo de Cristo que passou a habitar entre nós.
A primeira Bíblia completa em língua vernácula portuguesa só foi publicada em 1748 e em 1753, tradução de João Ferreira de Almeida (1628-1691), em vários volumes. Este foi o primeiro a trabalhar uma tradução completa da Bíblia a partir dos originais, e na procura de uma fidelidade total à Palavra de Deus. Antes dele, as traduções tinham sido parciais, baseadas em abreviados e em paráfrases. Foi longe de Portugal, reprimida pela Inquisição, que a Reforma Bíblica pôde crescer no coração de missionários portugueses, com a paixão de tornar a Palavra de Deus acessível ao povo de fala portuguesa. Nesse contexto, João Ferreira de Almeida conseguiu proteção nos territórios holandeses orientais mais acolhedores da Palavra de Deus e favoráveis à Reforma. Deus não deixou o Seu povo de língua portuguesa por mais tempo sem a Sua Palavra. Hoje, temos as Sagradas Escrituras acessíveis em vários formatos e suportes. Temos liberdade de estudá-las e de partilhá-las. Não corremos risco de vida nem precisamos de grandes meios financeiros para a obter. Não é isto um motivo de louvor para com Deus por reconhecimento da bênção de ter a Sua Palavra? Certamente o Senhor quer que manifestemos, hoje, o mesmo espírito missionário e bíblico daqueles homens e mulheres que se apaixonaram pela Bíblia e que sentiram sede e fome da Sua mensagem.